Milhões de luvas médicas usadas foram importadas para os EUA
25/10/2021
Sacos de lixo cheios de luvas médicas usadas, algumas visivelmente sujas, outras até com manchas de sangue, espalham-se pelo chão de um armazém nos arredores de Bangkok, capital da Tailândia.
Por perto, está uma tigela de plástico, cheia de tinta azul e algumas luvas. Autoridades tailandesas disseram que trabalhadores migrantes estavam tentando fazer as luvas parecerem novas outra vez, quando autoridades de saúde tailandesas fizeram uma batida nas instalações em dezembro de 2020.
Existem muitos outros depósitos como este ainda em operação hoje na Tailândia, em uma tentativa de lucrar com a demanda por luvas de nitrila de uso médico, que explodiu com a pandemia do coronavírus. E eles estão encaixotando milhões dessas luvas abaixo do padrão para exportação para os Estados Unidos e países ao redor do mundo em meio a uma escassez global que levará anos para melhorar.
Uma investigação da CNN internacional que durou meses revelou que dezenas de milhões de luvas de nitrilo falsificadas e usadas chegaram aos Estados Unidos, de acordo com registros de importação e distribuidores que compraram as luvas – e isso é apenas a ponta do iceberg. Investigações criminais estão em andamento pelas autoridades dos Estados Unidos e da Tailândia.
Os especialistas descrevem uma indústria repleta de fraudes. Um deles, Douglas Stein, afirmou à CNN que as luvas de nitrila são “a mercadoria mais perigosa do planeta no momento”.
“Há uma quantidade enorme de produtos ruins chegando”, diz Stein, “um fluxo interminável de luvas imundas, de segunda mão e abaixo do padrão chegando aos Estados Unidos, cujas autoridades federais, ao que parece, só agora estão começando a entender a enorme escala”.
No entanto, apesar do risco potencial para os pacientes e profissionais de saúde da linha de frente contra a Covid-19, as autoridades dos EUA têm lutado para controlar o comércio ilícito – em parte porque as regulamentações de importação de equipamentos médicos de proteção foram temporariamente suspensas no auge da pandemia – e permanecem suspensas hoje.
Em fevereiro e março deste ano, uma empresa norte-americana avisou duas agências federais – Serviço de Alfândegas e Proteção de Fronteiras (CBP, na sigla em inglês) e a Food and Drug Administration (FDA), órgão semelhante à Anvisa no Brasil – que havia recebido remessas cheias de luvas abaixo do padrão e visivelmente sujas de uma empresa na Tailândia.
Mesmo assim, a empresa tailandesa conseguiu despachar dezenas de milhões de luvas a mais nos meses seguintes, algumas chegando apenas em julho.
A FDA disse à CNN que não poderia comentar sobre casos individuais, mas afirmou que tomou “uma série de medidas para encontrar e parar aqueles que vendem produtos não aprovados, aproveitando nossa experiência em investigação, exame e revisão de produtos médicos, tanto na fronteira quanto no comércio interno”.
Um aumento na demanda
No início de 2020, a demanda por Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) disparou enquanto a pandemia de Covid-19 se espalhava pelo mundo. E os preços das luvas de nitrila permaneceram altos.
Luvas de nitrilo de grau médico são comumente usadas pelos profissionais de saúde em exames de pacientes. A FDA proíbe o uso de látex em pó na área da saúde, enquanto as luvas de vinil de qualidade inferior são mais comuns em ambientes industriais e manipulação de alimentos.
As luvas, produzidas quase inteiramente no Sul e no Leste da Ásia, contam com um suprimento limitado de borracha natural, fábricas altamente especializadas e conhecimento específico em manufatura de nicho. Aumentar o fornecimento não era algo que podia acontecer rapidamente e a produção de marcas estabelecidas e confiáveis era negociada com anos de antecedência.
Os governos e os sistemas hospitalares lutaram para conseguir o que precisavam – e dezenas de empresas duvidosas que buscavam obter lucro rápido viram uma oportunidade.
No final do ano passado, Tarek Kirschen, um empresário de Miami, encomendou cerca de US$ 2 milhões (hoje cerca de R$ 11 milhões) em luvas de uma empresa tailandesa chamada Paddy the Room, que ele então vendeu para um distribuidor nos Estados Unidos.
“Começamos a receber telefonemas de clientes completamente descontentes e, você sabe, gritando e berrando conosco, dizendo: ‘Ei, você nos ferrou’”, lembra ele.
Kirschen viu o produto pessoalmente quando um segundo contêiner chegou a Miami. “Essas luvas foram reutilizadas. Elas foram lavadas, recicladas”, disse ele à CNN. “Algumas delas estavam sujas. Algumas tinham manchas de sangue. Algumas delas tinham marcadores com datas de dois anos atrás […] Eu não podia acreditar no que via”.
Kirschen diz que devolveu o dinheiro a seus clientes, colocou as luvas em um aterro sanitário e alertou o FDA em fevereiro de 2021.
Ele diz que nenhuma das luvas que encomendou foi usada em ambientes hospitalares, mas uma análise da CNN dos registros de importação mostra que outros distribuidores dos EUA adquiriram quase 200 milhões de luvas da Paddy the Room durante a pandemia.
Não está claro o que aconteceu com essas luvas depois que entraram no país. A CNN tentou contato com todos os importadores. A grande maioria não respondeu, mas dois afirmaram que as remessas estavam abaixo do padrão e que as luvas nem mesmo eram de nitrila.
Uma empresa, a Uweport, disse à CNN que não foi possível revender os produtos para empresas médicas, conforme planejado. Em vez disso, eles foram vendidos a um preço mais baixo para distribuidores que abastecem fábricas de processamento de alimentos, hotéis e restaurantes norte-americanos.
A outra empresa, a US Liberty LLC, teve uma experiência muito semelhante com a Paddy the Room. Ela diz que também foi enganada por outra empresa vietnamita, que enviou “luvas furadas, manchadas, rasgadas e em diferentes tons e cores”, disse o presidente da empresa, Firas Jarrar, à CNN.
Stein, que compra EPIs da Ásia há décadas, acompanha as inúmeras fraudes e golpes em todo o Sudeste Asiático desde o início da pandemia. “É ridiculamente nefasto em todos os elos da rede”, disse ele à CNN.
Stein, que acumulou uma sequência de compradores e vendedores no LinkedIn, muitas vezes se vê aconselhando pessoas que perderam milhões de dólares em fraudes com luvas de nitrilo e tentando dissuadir as pessoas de assinarem acordos que são claramente bons demais para serem verdade. Ele diz que os descontos oferecidos costumam ser incrivelmente altos.
Louis Ziskin é um empresário americano que ficou tentado a comprar. “Vimos cifrões. Também vimos que tínhamos clientes médicos legítimos que estavam literalmente implorando por esses itens”, disse ele à CNN.
Sua empresa, a AirQueen, deu início a um pedido de US$ 2,7 milhões (cerca de R$ 15 milhões) da Paddy the Room, por meio de um terceiro também com sede na Ásia. Todos pagaram 100% adiantado.
Ziskin é um ex-presidiário que passou mais de uma década atrás das grades depois de ser pego contrabandeando a droga de ecstasy para os Estados Unidos em 2000.
Mas, na última década, ele se tornou um empresário de tecnologia de sucesso, cujo negócio já foi descrito na revista Forbes. Mas então ele entrou no mundo tenebroso das luvas de nitrilo.
Uma inspeção independente realizada em um depósito de Los Angeles e verificada pela CNN confirmou que a maioria das luvas que ele comprou não eram de nitrila, mas de látex ou vinil de baixa qualidade, e muitas estavam obviamente sujas e eram de segunda mão.
Ziskin diz que não havia como encaminhá-las para hospitais em sã consciência. “É uma questão de segurança total […] para mim, o fato de essas empresas nunca terem entrado na lista vermelha é chocante”, disse ele à CNN.
O golpe é elaborado. A Paddy the Room enviou a Ziskin relatórios de inspeção independentes com o objetivo de mostrar que as luvas na remessa eram de alta qualidade. Os documentos, porém, eram falsos. A empresa de fiscalização cujo laudo havia sido falsificado confirmou à CNN que os relatórios eram falsos.
Como Kirschen, Ziskin alertou as autoridades norte-americanas logo depois de receber sua remessa de luvas no início deste ano, entrando em contato com a FDA e o Serviço de Alfândegas e Proteção de Fronteiras (CBP).
Ainda assim, os registros de importação mostraram que os avisos pareciam não fazer diferença. Desde o aviso por escrito de Ziskin ao CBP em fevereiro, 28 contêineres totalizando mais de 80 milhões de luvas enviadas pela Paddy the Room entraram nos Estados Unidos.
O fluxo de luvas abaixo do padrão para os EUA também foi facilitado pela suspensão temporária dos regulamentos de importação da FDA.
“Simplesmente não havia outra resposta. Não havia como atender à demanda”, explicou Stein. “Mas isso abriu as comportas para todo o comportamento nefasto”.
Em um comunicado, a FDA disse à CNN que as empresas só podiam importar sob as regras flexibilizadas “desde que as luvas estejam em conformidade com os padrões de consenso e rotulagem citados na orientação e onde as luvas não criem um risco indevido”.
Mas poucas verificações físicas são feitas nas luvas ou em quaisquer outros itens que chegam aos portos norte-americanos, e quaisquer luvas médicas que fossem fraudulentas ou mesmo contaminadas provavelmente não seriam descobertas até que chegassem ao seu destino.
Em agosto, a FDA finalmente enviou um alerta a todos os seus funcionários dos portos de que as remessas do Paddy the Room deveriam ser detidas sem exame físico. Isso aconteceu cinco meses depois que Kirschen e Ziskin deram o alarme.
A FDA não quis comentar sobre sua investigação sobre a Paddy the Room, mas funcionários do Departamento de Segurança Interna (DHS, na sigla em inglês) confirmaram que há uma investigação criminal em andamento sobre a empresa.
O CBP disse à CNN que apreendeu cerca de 40 milhões de máscaras falsas e centenas de milhares de outros itens de EPI. O serviço afirma que apreendeu alguns carregamentos de luvas, mas não rastreou o volume de apreensões.
A CNN questionou o DHS se o sistema havia falhado devido ao número de luvas usadas que entraram na cadeia de suprimentos americana.
“Não sei se essa é a maneira certa de formular a pergunta”, disse o Agente de Operações Especiais de Investigações do DHS, Mike Rose. “Acho que todos nós adoraríamos chegar a um ponto em que nenhuma mercadoria perigosa falsificada entrasse nos Estados Unidos – e acho que estamos trabalhando para isso”.
No início da pandemia, o DHS lançou o que chamou de “Operação Promessa Roubada” para reprimir especificamente os EPIs falsificados. Rose afirma já ter feito mais de 2 mil apreensões de EPIs e de tratamentos relacionados à Covid-19.
“Acho que o DHS tem sido um modelo em todo o mundo para a melhor forma de coordenar os esforços entre as diferentes agências para realmente interromper a importação, as transações e todas as outras atividades criminosas em torno da Covid”, disse Rose.
Incursões de Bangkok
A agência sanitária tailandesa tem lutado para acompanhar o comércio fraudulento de luvas nitrílicas. Quando seus agentes invadiram a Paddy the Room pela primeira vez em dezembro passado, eles encontraram pilhas de sacos de lixo cheios de luvas soltas – de diferentes cores, materiais e qualidade.
Os trabalhadores do depósito transformavam as luvas velhas em novas, colocando em caixas falsificadas com a marca SriTrang – um conhecido e legítimo produtor de luvas da Tailândia. SriTrang disse à CNN que não faz negócios com Paddy the Room.
Ziskin acabou com milhares de caixas daquelas luvas SriTrang falsificadas – a maioria com o logotipo da empresa em tailandês.
De acordo com Doug Stein, o especialista em EPIs, as luvas enviadas para os Estados Unidos nunca seriam colocadas em caixas etiquetadas em um idioma estrangeiro. Só isso já deveria ter disparado o alarme, disse ele.
A FDA tailandesa prendeu o proprietário do armazém, mas não foi capaz de apresentar queixa contra o inquilino – um residente de Hong Kong, de acordo com a agência.
No entanto, a incursão não fechou a Paddy the Room. A secretária-geral adjunta da Thai FDA, Supattra Boonserm, disse à CNN que meses depois sua agência invadiu uma instalação semelhante.
“Eles acabaram de se mudar para outro local, para outro depósito”, disse ela. “E por que isso? Porque a demanda por luvas ainda é alta. Ainda há clientes esperando lá fora”, disse ela à CNN.
Paddy the Room e sua empresa parceira não responderam aos pedidos de comentários da CNN.
A FDA tailandesa afirma que realizou pelo menos dez batidas nos últimos meses e apreendeu luvas usadas e de baixa qualidade que estavam sendo embaladas novamente em caixas falsificadas. Algumas incursões encontram trabalhadores esfregando luvas usadas com as mãos em tigelas e tingindo-as com corante alimentício.
“Pode ser muito lento secá-las pendurados, então eles as colocariam em uma secadora, literalmente uma secadora de roupas”, explicou Boonserm. Ela suspeita que muitas luvas usadas são coletadas na China ou na Indonésia e enviadas para a Tailândia para serem lavadas, secas e reembaladas.
“Em termos simples, é fraude”, diz Boonserm. “Nessa situação de epidemia, a demanda é enorme tanto dos hospitais quanto do público em geral. O volume de luvas ilegais que encontramos é enorme”.
Doug Stein diz que, dada a escala do comércio ilícito, ele acha provável que algumas luvas tenham acabado em ambiente hospitalar. Mas não está claro se alguma dessas luvas fraudulentas e reutilizadas prejudicou algum trabalhador de saúde ou paciente dos Estados Unidos.
Boonserm diz que sua agência acredita que há uma rede de indivíduos e empresas corruptos na Tailândia trabalhando juntos para lucrar com o clamor global por luvas de nitrilo. Uma dessas empresas é a SkyMed, uma marca dirigida por um ex-oficial militar tailandês. Caixas com o rótulo SkyMed foram encontradas na invasão da Paddy the Room em dezembro.
“SkyMed, com certeza é falso”, diz Boonserm. De acordo com ela, a empresa tem uma licença de importação para trazer luvas médicas feitas no Vietnã, mas os registros mostram que a SkyMed nunca importou luvas médicas para a Tailândia, nem a empresa fabrica suas próprias luvas. A SkyMed não respondeu aos repetidos pedidos de comentários para esta reportagem.
A extensão da fraude na indústria de luvas médicas levou muitos compradores internacionais a medidas drásticas para recuperar seu dinheiro.
Louis Ziskin decidiu ir para a Tailândia em um esforço para recuperar os US$ 2,7 milhões perdidos por sua empresa, mas as coisas rapidamente deram errado.
Ziskin e vários outros foram presos e acusados de agressão e sequestro após um confronto em um restaurante em Bangkok. Ziskin disse que não estava lá e negou veementemente as acusações.
“Vou ver isso até o fim”, ele afirmou. “Vou recuperar meu dinheiro para a empresa? Provavelmente não. Estamos trazendo uma luz sobre isso, onde, esperançosamente, os Estados Unidos podem se levantar do tribunal e pará-los? Sim. Se isso é justiça, então essa é a minha esperança”.
Depois que a polícia tailandesa perdeu o prazo para apresentar as provas no caso, Ziskin foi autorizado a deixar a Tailândia e voou para casa em Los Angeles. A polícia tailandesa disse à CNN que a investigação não foi encerrada.
Outros ligados ao incidente ainda estão sendo julgados na Tailândia. Todos negaram as acusações contra eles.
Em 27 de julho, o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos (DHS) esvaziou o depósito de Ziskin em Los Angeles, apreendendo 70 mil caixas como prova em sua investigação sobre a Paddy the Room, cerca de cinco meses depois que ele fez o alerta pela primeira vez.
A grande incógnita é quantos milhões de luvas nitrílicas abaixo do padrão podem estar empilhadas em depósitos nos portos dos Estados Unidos.
Doug Stein acredita que a fraude pode chegar a bilhões de dólares. “Tornou-se um subterrâneo escuro, escuro”, diz ele, “onde o medo encontra a ganância”.
*Com CNN Brasil
Foto: Getty Images/iStockphoto