Estudo detalha benefícios do transplante de células-tronco no tratamento da esclerose sistêmica
06/08/2021
A esclerose sistêmica afeta uma em cada 20 mil pessoas, em sua maioria mulheres na faixa dos 30 a 50 anos. É uma doença reumática autoimune, rara e agressiva, que compromete o paciente funcionalmente pela substituição de tecido normal por tecido cicatricial. Nos indivíduos que têm a forma mais grave, a mortalidade é de 30% a 50% em cinco anos.
Um dos tratamentos existentes é o transplante de células-tronco hematopoiéticas – aquelas capazes de se diferenciar em células especializadas do sangue e do sistema imune. Os mecanismos envolvidos no transplante vêm sendo estudados por cientistas do Centro de Terapia Celular (CTC) da Universidade de São Paulo (USP) que, em trabalho recente, estabeleceram o efeito do procedimento sobre o compartimento de células B do sistema imune (grupo de linfócitos responsável pela produção de anticorpos), correlacionando-o à melhora dos pacientes e sinalizando outras possíveis opções de tratamento futuras.
“Os pacientes com esclerose sistêmica perdem o que chamamos de tolerância imunológica, desenvolvendo linfócitos B e T autorreativos, ou seja, que reconhecem e atacam tecidos do próprio organismo. O papel das células B na esclerose sistêmica ainda não é bem definido na literatura. Conseguimos descobrir um novo mecanismo de ação do transplante: as células B reguladoras são importantes para o controle da autoimunidade e remissão da doença logo após o tratamento”, resume Kelen Malmegrim de Farias, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP.
“Como a ideia nesse caso é tratar o sistema imunológico, pois é ele que agride o organismo do paciente, nossos resultados são bastante promissores. O transplante ainda é muito genérico, já que impacta todo o sistema imune, e também muito agressivo. Mas resultados como este mostram que, no futuro, talvez consigamos ser mais pontuais e focar somente nas células que interessam – e isso vale também para pacientes não transplantados, tratados com imunossupressores. Conhecendo o mecanismo de ação de cada célula envolvida, talvez consigamos desenvolver terapias mais específicas”, explica a reumatologista Maria Carolina de Oliveira, livre-docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.
Oliveira enfatiza a gravidade da esclerose sistêmica. “A pessoa acometida pela doença não consegue se movimentar, em muitos casos não consegue sair da cama, é muito debilitante. A pele do rosto e das mãos engrossa, às vezes até a do tórax e do abdômen. Além de atingir a pele, pode endurecer ou paralisar órgãos internos como esôfago, estômago, intestino, rins, pulmões e coração. Quando afeta os pulmões, a pessoa sente falta de ar.”
Malmegrim e Oliveira são coautoras de um artigo recentemente publicado na revista Rheumatology, que tem como primeiro autor o biomédico João Rodrigues Lima-Júnior, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Biociências e Biotecnologia da FCFRP-USP. Ambas são também pesquisadoras do CTC, um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) financiado pela FAPESP desde 2000 e formado por pesquisadores da USP e do Hemocentro Regional de Ribeirão Preto, entre eles médicos, biólogos, biomédicos, farmacêuticos e veterinários. O CTC é referência em pesquisa com células-tronco e terapias celulares no Brasil e a única instituição do país com tamanha experiência acumulada em transplantes para tratamento de doenças autoimunes, incluindo a esclerose sistêmica.
Transplante
Como explica Oliveira, a doença traz lesões irreversíveis (como a “mão em garra”, por exemplo), mesmo com o transplante. No entanto, o transplantado consegue voltar a realizar as atividades do dia a dia e vive mais tempo.
No CTC são transplantados casos graves, quando há comprometimento do pulmão ou de grande parte da pele. Desde 2004 a equipe já transplantou por volta de 120 pessoas, com resultados clínicos considerados muito bons. “Os pacientes têm melhora na pele e ganho funcional, conseguem voltar a trabalhar e a realizar atividades como dirigir, cozinhar ou cuidar da família. A parte respiratória, ao menos, estabiliza e há ganho de qualidade de vida. Já sabíamos sobre as evidências da melhora clínica, mas não conhecíamos os mecanismos envolvidos”, diz a médica.
O transplante é autólogo, ou seja, não é necessário doador. “Colhemos as células-tronco saudáveis do próprio paciente e as congelamos. Esse procedimento é todo feito no Hemocentro Regional de Ribeirão Preto, onde fica a sede do CTC. Então, ministramos ao paciente uma mistura de imunoterapia com quimioterapia, um mix de fármacos que destrói as células produzidas na medula óssea: as do sangue e as do sistema imune. Depois, descongelamos aquelas células-tronco e as colocamos de volta. E, assim, praticamente reiniciamos o sistema imunológico. As células-tronco vão gerar uma medula óssea nova, um sangue novo e um sistema imunológico novo, que deixa de agredir o organismo”, explica Oliveira.
Segundo ela, nem todos os acometidos pela esclerose sistêmica são elegíveis para o transplante. “Para aquele que tem a doença em forma muito leve não compensa o risco, pois é possível tratá-lo de maneira relativamente satisfatória com imunossupressores, que são os medicamentos geralmente utilizados. E para aquele que já está em estado muito grave, com muitas lesões irreversíveis, também não, pois ele correrá o risco do procedimento sem nenhum benefício. A seleção é uma das coisas mais difíceis do processo.
Os médicos tendem a encaminhar para o transplante o paciente que já está muito gravemente acometido. É preciso um trabalho de alertar o reumatologista para diagnosticar e enviar o paciente a tempo para o transplante, ainda encarado por muitos profissionais como a última solução possível. Além disso, como se trata de uma doença rara, poucos têm experiência em lidar com ela, e o diagnóstico se confunde com o de lúpus e de artrite reumatoide”, relata Oliveira, lembrando que a idade-limite para o transplante no CTC é de 60 anos.
A médica esclarece que, após o transplante, o sistema imune demora algo em torno de dois anos e meio ou três anos para se reconstituir completamente. “Nós retiramos os imunossupressores do paciente, tomamos muito cuidado com infecções e, naturalmente, temos de refazer todas as vacinas da pessoa, que é acompanhada até cinco anos após o procedimento.”
*Com informações de Karina Ninni | Agência FAPESP
*Foto: Getty Imagens