Para curar a homossexualidade, jovem teria sido submetida a isolamento, exorcismos e terapia em seminário evangélico
28/12/2020
O violão de Cláudia Baccile está guardado. Ela parou de tocar desde que foi expulsa do Centro de Treinamento Ministerial Diante do Trono (CTMDT), da igreja evangélica Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Foi em 2009. Na época, a designer tinha 19 anos e queria ser ministra de louvor como Ana Paula Valadão, cantora e pastora líder da banda Diante do Trono.
A fama do grupo gospel – reconhecido como um dos maiores ministérios de louvor da América Latina – atraía estudantes de todo o país, e até do exterior, para o CTMDT. Segundo Cláudia, o seminário era uma espécie de faculdade do Diante do Trono, embora não fosse reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC).
Os cursos eram pagos e os internos passavam por um processo seletivo do qual faziam parte cartas de recomendação de pastores e o preenchimento de um formulário que, entre outras coisas, perguntava sobre experiências homossexuais.
Cláudia conta que deixou a família, em Brasília (DF), para estudar “louvor e adoração” com as estrelas do Diante do Trono, incluindo a própria Ana Paula Valadão, e outros professores. Dois anos depois, o vestido da formatura já estava comprado. A mãe dela voou até Minas para participar da festa. No dia do baile, mesmo tendo sido aprovada em todas as disciplinas, ela foi expulsa e impedida de pegar o diploma por ser lésbica.
“O pastor líder disse que o nome do ministério não podia ser associado a pessoas como eu”, lembra. Era o desfecho de uma sequência de experiências traumáticas no ambiente religioso, que causaram na jovem danos psicológicos permanentes. Para “curar” a homossexualidade, ela relata que foi isolada em um sítio, submetida a exorcismos, e fez sessões de terapia com psicólogos da própria Igreja Batista da Lagoinha.
O convite da formatura do seminário tem a imagem de Cláudia, mas ela foi impedida de participar da celebração
Abominação aos olhos de Deus.
Aos 30 anos, e casada com uma mulher, Cláudia fala com certa liberdade sobre sua experiência. Mas ainda convive com as sequelas do sofrimento intenso nos anos de seminário. No ano em que foi expulsa da escola, ela deixou de frequentar a igreja. Caiu em uma depressão profunda que reduziu sua imunidade a ponto de ser internada com múltiplas infecções. Ela ainda toma antidepressivos e ansiolíticos.
Desde os 5 anos, a designer se reconhece como lésbica. Mas não tinha ficado com mulheres até se apaixonar por uma aluna do seminário. Elas tiveram um caso quase platônico, sem relações sexuais, porque achavam que a homossexualidade era pecado.
Movida pela culpa, ela revelou seus sentimentos à liderança da escola, que impôs o afastamento total das duas como condição para a continuidade dos estudos. “Tive que ler um versículo da Bíblia para ela na frente dos pastores. O texto falava que a homossexualidade é abominação para Deus. Ela saiu da sala chorando. Foi horrível”, lembra. Conforme seu relato, professores vigiavam os movimentos das estudantes e expunham o caso para outros alunos. Ela diz que teve o computador pessoal confiscado por uma das líderes, que vasculhou o dispositivo para achar trocas de mensagens dela com a outra aluna.
Violência e discriminação contra pessoas LGBTQI+ são crimes no Brasil desde julho de 2019. Felipe Daier, advogado especializado em direitos LGBTQI+, explica que “assim como o racismo, são crimes inafiançáveis e imprescritíveis, com pena de um a três anos de prisão”. Cláudia nunca fez uma denúncia formal contra o seminário, que parou de funcionar em 2018, em razão de uma crise financeira do Diante do Trono.
Este ano, o Ministério Público Federal (MPF) aceitou uma denúncia contra a líder do Diante do Trono, Ana Paula Valadão, que está sendo investigada por homofobia. O caso se refere a um vídeo de 2016, que só viralizou agora, em que ela afirma que homossexualidade “não é normal”. “Tá aí a aids para mostrar que a união sexual entre dois homens causa uma enfermidade que leva à morte e contamina as mulheres”, fala a cantora gospel.
Lideranças evangélicas brasileiras condenaram a investigação. O pastor Silas Malafaia, presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e um dos pastores mais influentes do Brasil, chamou o inquérito de “perseguição religiosa”. O ministro de Justiça e Segurança Pública do governo Bolsonaro, André Mendonça, disse que respeitar os homossexuais “não significa que o cristão deva concordar ou não possa questionar o homossexualismo”, um termo considerado pejorativo, porque o sufixo “ismo” é associado a patologias, doutrinas e ideologias. Desde 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID).
A família Valadão, líder da Igreja Batista da Lagoinha – da qual a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, já foi pastora –, também está envolvida em outros casos de LGBTfobia. Em 2016, Ana Paula defendeu o boicote às lojas C&A nas redes sociais por causa de uma campanha de moda sem gênero. Em setembro deste ano, o irmão dela, André Valadão, cantor gospel e pastor da Batista da Lagoinha, passou a ser investigado pela Comissão de Diversidade de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Minas Gerais por causa de um post nas redes sociais em que dizia que “a igreja não é lugar para gays”. Esta investigação está em andamento no Ministério Público Federal.
Isolada e tratada como doente
Por diversas vezes, pastores fizeram orações para expulsar demônios de Cláudia. Ela foi levada à Estância Paraíso, um sítio no município de Sabará (MG) pertencente à Igreja da Lagoinha. Isolada, sem saber onde estava, teve uma crise de ansiedade. “Uma obreira a quem pedi socorro disse que minha taquicardia era o mover do Espírito Santo.”
Durante três dias de internação, ela cumpriu uma rotina intensa de orações, palestras e cultos, em que ouvia sobre curas de homossexuais, de vícios em bebidas e drogas, conversão de adúlteros e arrependimento de pessoas que roubavam. “É um lugar para casos perdidos, na visão deles. Pessoas com depressão e todo tipo de vícios. No seminário, víamos quem ia à estância como um doente internado no hospital”, lembra.
A Estância Paraíso é um retiro espiritual frequentado por famosos como a artista Simone, da dupla sertaneja Simone e Simaria. O cantor Naldo procurou o espaço depois de ter sido acusado de agressão pela esposa e preso por porte ilegal de armas. Ele participou de um programa de cura e libertação espiritual chamado Moriá, com duração de três dias, que custa R$ 950.
O local, ligado ao ministério de cura e recuperação da Lagoinha, é liderado pela pastora Ezenete Rodrigues, outro nome forte do Diante do Trono. Além dos programas espirituais, a Estância Paraíso promove, segundo seu site, programas de acolhimento de grávidas com pauta antiaborto e acolhimento de crianças de 0 a 6 anos afastadas do convívio familiar por medida protetiva no Estado. As crianças são encaminhadas pela Vara da Família, pelo Ministério Público e pelos conselhos tutelares de Minas Gerais.
Clínica da Alma
Quando voltou ao seminário, Cláudia foi orientada por uma professora, que era psicóloga, a procurar a Clínica da Alma. Nesse espaço, psicólogos cristãos da Batista da Lagoinha prestam atendimentos sociais que custam R$ 80 por sessão.
A Clínica da Alma funciona em um dos prédios da igreja, que é dona de vários imóveis em Belo Horizonte (MG). Seu objetivo é, segundo a própria instituição, “trazer libertação e cura para a alma, para o espírito e o corpo do homem por meio do ensino, da adoração e do poder do Espírito Santo”.
Quatro psicólogos cristãos atendem no espaço, que, embora se chame “clínica”, é um serviço social sem CNPJ, que não aceita plano de saúde. Lá são oferecidas também outras terapias, como quiropraxia e psicopedagogia, e os cursos da “Escola de Restauração”, que abordam cura interior, aborto e sexualidade, entre outros temas. As aulas presenciais estão suspensas por conta da pandemia, mas os conteúdos podem ser acessados no ensino a distância ao preço de R$ 299 por módulo.
Das sessões com a psicóloga, pouco ficou na memória de Cláudia, aturdida a esse ponto pelo estresse emocional. Ela não se lembra, por exemplo, se houve abordagens diretas sobre sua orientação sexual no consultório, apenas de desenhar e compartilhar angústias. “Mas fui encaminhada para lá com a perspectiva de deixar a homossexualidade”, afirma.
Naquele meio evangélico, era comum, diz, a tentativa de associar o desejo por pessoas do mesmo sexo a problemas com os pais, traumas de infância, abusos ou, ainda, inveja da pessoa por quem se sente desejo. “Para eles, é um distúrbio que pode ser mudado. Ou seja, acreditam que é possível alguém deixar de ser gay se as causas para esse comportamento fossem tratadas.”
Tratamentos que prometem a “cura gay”, como são popularmente conhecidas as terapias de reorientação sexual, são proibidos no Brasil desde 1999 por resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Em 2017, um grupo de psicólogos cristãos, incluindo defensores das terapias de reversão sexual, conseguiu derrubar a resolução, mas a decisão foi suspensa apenas por recurso do CFP. Isso, no entanto, só aconteceu em 2019.
Rozângela Alves Justino faz parte do grupo que conseguiu derrubar a resolução que proíbe a cura gay. Ela é uma das fundadoras da Exodus Brasil, braço da Exodus Global Alliance, uma instituição que promove o discurso de cura de homossexuais internacionalmente. (Leia nossa investigação sobre a Exodus na América Latina). Além disso, integra o Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC) e o Movimento Ex-Gays do Brasil. Este último foi recebido no gabinete da ministra Damares Alves em 2019.
Em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve suspensa uma decisão judicial que autorizou psicólogos a aplicar terapias de reversão da homossexualidade. Apesar disso, denúncias continuam sendo recebidas pelos conselhos de psicologia brasileiros, como o de Minas Gerais. Nenhuma delas está relacionada a igrejas, nem à Batista da Lagoinha ou à Clínica da Alma. Segundo o órgão, não há empecilhos para que a Batista da Lagoinha ofereça atendimento psicológico como um serviço social.
“Psicólogos podem realizar atendimentos em igrejas ou em locais mantidos por instituições religiosas, contanto que a laicidade seja mantida dentro do consultório”, explica o presidente da Comissão de Orientação e Fiscalização do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, Reinaldo da Silva Júnior. Quanto à atuação da Clínica da Alma, Silva Júnior adverte que “a fé do profissional não pode interferir no atendimento dos pacientes” e explica que “caso haja tentativa de orientação religiosa por parte do profissional, é irregular, e qualquer prática de cura gay é proibida”.
A Pública procurou a assessoria de comunicação da Igreja Batista da Lagoinha por telefone e por e-mail. Um dos contatos da comunicação nos informou de que deveríamos procurar a assessoria de imprensa do Diante do Trono, o que fizemos via e-mail, mas não recebemos resposta até a publicação. Também tentamos alguns telefones sem sucesso. (Agência Publica)
*Foto: Pexels