Brasil é denunciado por relatora da ONU pela falta de remédios para hanseníase
23/10/2020
A situação dos afetados pela hanseníase no Brasil preocupa a relatora da ONU, Alice Cruz. Em entrevista exclusiva ao UOL, a especialista descreveu um cenário delicado para essas pessoas no país e indicou que retrocessos no atual governo relacionados a saúde estão afetando esses grupos. Ela ainda alertou para a falta “incompreensível” de remédios, mesmo aqueles que são distribuídos gratuitamente.
Num comunicado público, emitido nesta quinta-feira (22) em Genebra, Alice Cruz pediu ainda que o Supremo Tribunal reconheça o direito à reparação dos indivíduos que, enquanto crianças, foram separados dos seus pais afetados pela hanseníase e segregados da sociedade no Brasil.
Cerca de 16 mil crianças foram afastadas dos seus pais por conta da doença e enviadas para instituições, entre 1923 e 1986. Durante a última década, foram apresentados vários casos por essas crianças, hoje já adultas, nos tribunais estaduais, mas estes ainda estão pendentes.
“O Supremo Tribunal tem agora uma oportunidade de corrigir esta injustiça que, dados os seus efeitos duradouros, deve ser considerada uma violação permanente de natureza imprescritível”, disse Alice Cruz. “Estas pessoas suportaram uma vida inteira de sofrimento em resultado deste tratamento desumano e, para muitos que são agora idosos, o tempo está a esgotar-se para que vejam corrigidos os erros do passado”, afirmou. O caso deverá ser ouvido pelo Supremo Tribunal antes do final do ano.
Para ela, o Brasil tem o dever de oferecer reparações totais, incluindo um pedido de desculpas, memorialização e reabilitação, aos filhos separados dos seus pais com hanseníase, em conformidade com as normas internacionais relevantes em matéria de direitos humanos.
A perita da ONU afirmou que muitas das crianças relataram ter sido abusadas em instalações estatais conhecidas como “preventórios”. Durante a sua visita ao Brasil em maio de 2019, Cruz ouviu testemunhos de várias crianças separadas, que são agora adultos. A relatora admite que o Brasil “tem feito vários esforços louváveis na proteção dos direitos das pessoas afetadas pela hanseníase, mas é preciso fazer mais, especialmente no que diz respeito aos direitos dos seus filhos e filhas. Justiça atrasada é justiça negada”, disse.
Na entrevista, ela cita que depois de enviar uma carta ao governo em novembro de 2019, nenhuma resposta havia sido dada por meses. Mas neste dia 22, quase um ano depois, o governo brasileiro finalmente submeteu à relatora a uma resposta, exatamente no dia em que ela denunciaria publicamente a situação no país. O Itamaraty havia sido informado previamente que o comunicado aos jornalistas seria publicado.
Segue os principais trechos da entrevista
A senhora esteve no Brasil. Qual é a situação hoje das pessoas vivendo com hanseníase no país?
Tal como em outros países, as pessoas vivendo com hanseníase no Brasil, assim como suas famílias, estão entre os grupos que mais têm sofrido o impacto desproporcionado da crise de saúde e socioeconómica gerada pela COVID-19. Desde março deste ano que estou monitorando esta situação em todo o mundo, em contato permanente com grupos e organizações de pessoas afetadas pela hanseníase. A partir da informação que me tem sido veiculada, escrevi uma carta aberta aos Estados onde descrevo algumas das principais consequências desta crise, mas onde também apresento recomendações para a enfrentar.
O Brasil consta entre os países que mais me preocupam neste contexto, uma vez que se verifica, em simultâneo, um retrocesso nas áreas de acesso a saúde e a um padrão mínimo de vida entre as pessoas afetadas pela hanseníase e a carência de medidas específicas para o enfrentamento. Só para dar alguns exemplos, destaco o fato de que a uma parte significativa desta população no Brasil tem sido sistematicamente excluída do trabalho formal, o que significou, por um lado, que para garantir uma renda mínima tiveram de se expor à COVID-19 e, por outro lado, que no contexto da crise econômica global perderam rendimentos que já de si eram muito escassos.
Destaco também o fato de que a violência doméstica contra as mulheres afetadas pela hanseníase se exacerbou, o que no caso destas mulheres se soma a quadros generalizados de violência psicológica baseada na estigmatização de que muitas vezes são alvo. Mas, o acesso desigual a saneamento, habitação digna, água limpa e sabão, significou para muitas pessoas afetadas pela hanseníase a impossibilidade de seguir as normas de prevenção da COVID-19.
Poderia continuar, mas concluo destacando que a informação básica sobre a COVID-19 vem sido grandemente veiculada pelo movimento social, o MORHAN, face à ausência de estratégias de informação que alcancem populações vulneráveis e em áreas remotas. Lamentavelmente, não recebi relatos de que o governo tenha implementado qualquer das minhas recomendações na carta aberta que enviei aos Estados.
Quais são as principais preocupações?
Uma das principais preocupações é a falta de medicação para tratar a hanseníase em alguns estados do país. Há alguns meses tem faltado a medicação conhecida como poliquimioterapia. Esta medicação é disponibilizada gratuitamente pela OMS. Não vou discutir aqui as razões para a falta de medicação que parecem estar relacionadas tanto com problemas externos, quanto internos.
Mas sendo o Brasil o país com maior incidência em termos relativos da doença no mundo, é incompreensível que não exista um plano de ação que garanta a medicação nos casos em que existe alguma falha na cadeia de produção e entrega. Estamos a falar de pessoas que têm estado meses sem medicação. E estamos a falar de uma doença que se não é tratada oportunamente provoca quadros irreversíveis de deficiência.
O sofrimento gerado pela ausência de medicação é indescritível e é uma violação gravíssima do direito dessas pessoas à saúde. Escusado será dizer que esta situação terá um impacto significativo no aumento da transmissão da doença no país.
E quanto ao impacto da covid-19?
Outra preocupação grande é com o fato de que o auxílio emergencial criado pelo governo para responder à crise humanitária gerada pelo COVID-19 entre as populações mais vulneráveis não tem sido acessível à maioria da população afetada pela hanseníase. Em primeiro lugar, as pessoas que recebem a pensão garantida pela Lei nº11.520, em função de terem sido segregadas compulsoriamente no passado, não são automaticamente ilegíveis.
Em segundo lugar, parte significativa da população em causa tem um baixo nível de escolaridade e difícil acesso às novas tecnologias, vendo o acesso funcional a este auxílio impossibilitado na prática por barreiras procedimentais. Se muitas destas pessoas já viviam em situação de pobreza, a falta de proteção social neste contexto lança-as para uma situação de extrema pobreza.
Outra preocupação é a ausência de protocolos de biossegurança para as antigas colónias de hanseníase. Se é certo que as tentativas de acomodar espaços das antigas colónias para receber pacientes de COVID-19 foram felizmente barradas pelo movimento social – o MORHAN-, também é certo que sendo os moradores das antigas colónias pessoas idosas e, muitas vezes, imunodeprimidas, é absolutamente necessária uma ação dentro desses espaços que previna a transmissão do novo coronavírus e tal não tem acontecido. A isso soma-se a falta de informação sobre o número de pessoas afetadas pela hanseníase que adoeceram e que, lamentavelmente, também em muitos casos faleceram com COVID-19 no país. A estas situações muito preocupantes somam-se outras como a tentativa de despejo de muitas famílias de antigas colónias no Estado de São Paulo em plena pandemia.
Como o governo tem reagido às suas recomendações?
As recomendações que eu fiz ao governo nasceram de uma discussão alargada durante a visita que incluiu todos os setores que trabalham no campo da hanseníase. São recomendações pragmáticas e baseadas na realidade da hanseníase no país. O governo reconheceu isso mesmo e reagiu muito positivamente às minhas recomendações. Aguardamos ainda respostas claras no sentido da implementação dessas mesmas recomendações.
Movimentos sociais estão preocupados com a situação das crianças que foram separadas. Qual a avaliação que a senhora faz?
Há mais de 10 anos que as pessoas que foram retiradas dos seus pais imediatamente após o nascimento, sem lhes ser permitido qualquer contato com a sua mãe após o parto, e enviadas para instituições criadas para receber os filhos e filhas das pessoas afetadas pela hanseníase, esperam o justo reconhecimento do dano que lhes foi feito pelo Estado.
Sou testemunha do nascimento da sua luta no âmbito do MORHAN e da sua evolução, pelo que posso apreciar os danos psicológicos que mais de 10 anos de espera têm infligido a pessoas que vivem com um trauma profundo e que lhes roubou qualquer possibilidade de uma integração digna na sociedade. 10 anos é demasiado tempo para uma população que está a envelhecer e que merece um pedido de desculpas pelo Estado, tal como aconteceu recentemente no Japão.
Se a segregação é um trauma coletivo e individual na história moderna da hanseníase, a separação de recém-nascidos das suas mães e pais e o seu envio para instituições onde à falta de cuidados se somaram a todo tipo de maus-tratos, violência física, sexual e tortura, é uma das maiores violações perpetradas pelas respostas dos Estados à hanseníase. Estas pessoas precisam de uma reparação urgente que lhes devolva a dignidade e que promova a sua reabilitação psicológica, social e económica. O atraso dessa reparação está a ser vivido por estas pessoas como uma nova forma de tortura.
Qual a importância de uma decisão do Supremo Tribunal?
A decisão do Supremo Tribunal determinará a prescritibilidade ou não desta ação. É importante que o Supremo Tribunal leve em consideração o caráter duradouro destas violações que, segundo as provisões dos instrumentos internacionais de direitos humanos, configura uma violação permanente de natureza imprescritível. O Supremo Tribunal tem nas suas mãos a oportunidade de colocar fim a mais de 10 anos de espera insuportável e de restituir a justiça àqueles que viram negados, desde o nascimento, todos os seus direitos e liberdades fundamentais, reconhecendo-os como sujeitos de direitos. O Supremo Tribunal tem, assim, a oportunidade de virar a página numa vida de sofrimento e injustiça, mas também de passar uma mensagem ao mundo que garanta a não-repetição de violações sistemáticas e massivas.
No ano passado, a senhora enviou uma carta em novembro ao governo sobre essa situação. Por meses o governo não deu uma resposta. Que mensagem esse silêncio manda?
Desse silêncio podemos extrair várias interpretações. Ao invés de ser eu a interpretar esse silêncio, prefiro dar voz às filhas e filhos separados e exprimir o que esse silêncio significa para elas e eles. Esse silêncio fere estas pessoas que, após uma vida de abandono e sofrimento, se sentem novamente abandonadas e, pior, ignoradas.
Os governos têm uma responsabilidade de ouvir os seus cidadãos e, neste caso, estas pessoas têm procurado, por todas as vias, ser reconhecidas como cidadãos em termos iguais e com iguais direitos que o resto da população. Este silêncio é, para este grupo de pessoas, um sinal de que as suas vozes não apenas não são tidas como as vozes de cidadãos com direitos, mas, pior, que são ignoradas como as de pessoas esquecidas pela história.
Por Jamil Chade – Colunista do UOL
Fonte: UOL Notícias
Foto: Pixabay
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