Contrair Covid duas ou mais vezes ao ano pode ser comum com a ômicron, aponta estudo
18/05/2022
Ter Covid uma, duas ou até três vezes ao ano pode ser uma realidade concreta para pessoas que seguirem expostas sem barreiras à variante ômicron e suas subvariantes. O cenário é traçado por especialistas que conduziram um estudo na África do Sul e confirmado também pela experiência prática de médicos brasileiros ouvidos pelo g1.
Na África do Sul, pesquisadores da Universidade Stellenbosch analisaram quase 3 milhões de testes positivos de laboratório registrados até janeiro deste ano. Em artigo publicado na revista científica “Science“, eles apontam que reinfecções eram eventos raros, quase nulos, nas ondas provocadas pelas variantes beta e delta. Entretanto, depois de 31 de outubro de 2021, com o aparecimento da ômicron, a pesquisa localizou indivíduos que tiveram até três casos de reinfecção.
“A culpada foi a variante ômicron, que surgiu rapidamente, com múltiplas mutações na proteína spike. A principal vantagem dessa variante é sua capacidade de evitar a imunidade adquirida naturalmente (por infecção anterior)”, apontam os pesquisadores.
Nas ondas pré-ômicron da pandemia, casos de reinfecção eram raros e investigados: estudo na “The Lancet” associava as ocorrências pontuais à queda da imunidade após seis meses da imunidade adquirida. No recente estudo africano, as reinfecções foram verificadas em intervalos menores: 90 dias (três meses).
Total de infecções possíveis
Os dados da África encontram respaldo na experiência de médicos brasileiros que também se deparam com casos seguidos de reinfecção desde a chegada da variante.
“O número de vezes que uma pessoa pode ter Covid a gente ainda não sabe – provavelmente, infinitas vezes. Já tem pessoas com três, quatro infecções relatadas. Ou seja, não há imunidade duradoura na Covid – assim como para outras doenças respiratórias, como rinovírus”, explica Alberto Chebabo, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Alguns motivos tornam possível ter Covid várias vezes:
- As vacinas que temos hoje nos protegem contra casos graves da Covid, mas não contra a infecção pelo coronavírus. Além das máscaras, uma possibilidade de defesa seriam as vacinas nasais, que ainda estão sendo testadas;
- A variante ômicron, que é a dominante no Brasil, tem capacidade de escapar, em parte, à proteção que é concedida pelas vacinas.
- Algumas subvariantes da ômicron, mais contagiosas, também passaram a circular, facilitando as reinfecções.
- Mas nem tudo está perdido: se, de um lado, os casos de Covid mostram sinais de aumento, a tendência é de que não tenhamos uma onda de mortes e hospitalizações como as vistas nos últimos dois anos.
- Um outro ponto é que as máscaras continuam sendo as principais aliadas para quem busca proteção contra a infecção no atual momento.
- 1) Proteção contra caso grave x infecção
Um fator já conhecido é que as vacinas que temos hoje protegem contra casos graves da Covid, mas não contra a infecção. Um dos motivos para isso é que a infecção pelo coronavírus ocorre principalmente pela mucosa nasal. E as vacinas são dadas no braço, de forma intramuscular.
Uma forma de evitar a infecção seria, portanto, impedir que o vírus se multiplique exatamente em seu ponto de entrada no corpo: no nariz.
Assim, no mundo ideal, uma vacina nasal poderia ajudar o corpo a “produzir anticorpos que capturam o vírus antes mesmo que ele tenha a chance de se ligar às células”, explicou, em um artigo publicado nesta semana no jornal “The New York Times”, a pesquisadora Akiko Iwasaki, da universidade americana de Yale.
“As vacinas nasais podem reduzir potencialmente a infecção ao mínimo, o que também reduz o risco de Covid aguda e longa”, afirmou a pesquisadora, por e-mail, ao g1.
Iwasaki está trabalhando em uma dessas vacinas – que seriam capazes de promover a chamada “imunidade esterilizante”.
“Existem várias vacinas nasais que já estão em diferentes fases de ensaios clínicos. Estou esperançosa de que algumas delas mostrarão respostas imunes suficientes no tecido da mucosa para serem uma vacina melhor do que as intramusculares”, completou Iwasaki.
Um outro detalhe é que as vacinas de hoje provocam pouca produção de um anticorpo chamado IgA – no que as vacinas nasais poderiam ajudar, esclarece o médico Salmo Raskin, geneticista e pediatra diretor do Laboratório Genetika, em Curitiba.
“Ela [a vacina nasal] tem o potencial de, na mucosa da célula nasal, provocar a produção do anticorpo IgA. Como é pelo nariz que o coronavírus entra no nosso corpo, a gente pode estar falando pela primeira vez de uma barreira contra infecção”, afirma.
Mas Raskin não faz previsões de quando as primeiras vacinas desse tipo podem estar disponíveis – todas ainda estão em testes. Além disso, avalia o médico, diferente do que houve na primeira “corrida das vacinas” – com centenas de pesquisas ocorrendo ao redor do mundo ao mesmo tempo –, por enquanto parece haver pouco interesse em desenvolver uma versão nasal.
Para o geneticista, não devemos, tampouco, “colocar todos os ovos” na cesta das vacinas nasais. Ele defende que é preciso pensar, também, nas vacinas tradicionais de segunda geração, que devem ser melhor adaptadas para conter as novas versões do coronavírus.
“Todo mundo tem que tomar três doses, muitos têm que tomar quatro doses, isso é óbvio. Mas, além disso, e agora? E os próximos 12 meses? Não vai tomar quinta dose, sexta dose, sétima dose. Não vai acontecer. Na minha opinião, nós tivemos o desenvolvimento absolutamente espetacular da primeira geração de vacinas, salvou a vida de milhões de pessoas, mas a segunda geração está demorando”, avalia Raskin.
2) Variantes x vacinas
Um ponto importante na reinfecção, mesmo entre vacinados, é que parte da proteção vacinal “enfraquece” com o passar do tempo. Por isso, antes mesmo do surgimento da ômicron (leia mais abaixo), uma dose de reforço da vacina já começava a ser anunciada.
Mas, com o aparecimento da variante, a dose de reforço – ou duas, no caso de grupos como idosos e pessoas com problemas no sistema imune – passou a ser essencial. Isso porque a ômicron tem capacidade significativa de escapar à proteção concedida pelas vacinas de hoje.
“Toda vez que tem transmissão se mantendo, a gente está dando oportunidade para [o vírus] ter mutações, aí podemos ter novas ondas. A grande preocupação é ter novas VOCs [sigla em inglês para “variantes de preocupação”, como a ômicron] que vão diminuir a efetividade das vacinas que nós temos”, diz a epidemiologista Ethel Maciel, professora titular da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
A capacidade da ômicron de escapar às vacinas surgiu da quantidade e do tipo de mutações que ela reuniu – principalmente no pedaço do vírus que serve para ele infectar as nossas células, chamado de RBD.
“Nesse pedacinho em especial, a ômicron tem um monte de mutações. E agora não há mais dúvida do que essas mutações fizeram – elas camuflam a base da proteína spike [que o vírus usa para infectar a célula] ao ponto do nosso sistema imunológico reconhecer muito menos [o coronavírus], explica Salmo Raskin, do laboratório de Curitiba.
Até agora, uma terceira dose de vacina tem sido suficiente para evitar hospitalizações e mortes pela Covid, mesmo com o surgimento da ômicron.
“A spike é composta por 3,8 mil letrinhas genéticas. A ômicron tem 50 mutações: 50 dessas 3,8 mil [letras] estão alteradas. Para vir uma nova variante que escape totalmente da resposta imunológica, seja [por causa] da vacina ou da infecção, ela teria que ter um número de mutações muito maior, ou mutações em muitos outros lugares do que a ômicron tem. Não se espera isso – não se espera que possa haver uma variante com tantas mutações a ponto de escapar totalmente”, completa o médico.
3) Novas subvariantes
Se, por um lado, é positivo que as vacinas continuem funcionando apesar do escape parcial das variantes, as “novas versões” do vírus não precisam ser capazes de driblá-las completamente para causar uma nova infecção.
As subvariantes da ômicron, por exemplo, têm se mostrado ainda mais contagiosas do que a sua versão inicial – que, por sua vez, já era mais contagiosa do que o vírus original, que apareceu em Wuhan em 2020.
Em Nova York, a subvariante BA.2.12.1, que já se tornou dominante no estado, é um desses casos. Mais recentemente, no dia 12, o Centro de Controle de Doenças Europeu (ECDC) classificou as subvariantes BA.4 e BA.5, detectadas na África do Sul no início do ano, como de preocupação.
“A gente sabe que várias dessas subvariantes da ômicron têm escape imune em quem teve a infecção pela ômicron em janeiro. A BA.4 e BA.5, que estão circulando na África do Sul, e essa variante que está circulando nos Estados Unidos, BA2.12.1, são variantes que a gente sabe que têm escape imune”, lembra Alberto Chebabo, da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Para o médico, as novas ondas da doença trazidas pelas modificações no vírus verão menos casos graves, mas poderão trazer aumento de internação e óbitos em grupos mais suscetíveis, como idosos e pessoas imunodeprimidas. Isso porque, quanto mais o vírus circula, maior é a chance de que chegue em uma pessoa que não criou uma boa resposta imune, mesmo com a vacina (como é o caso desses grupos).
Se a chance de internação e morte diminuiu, de forma geral, graças às vacinas, o impacto de se infectar (ou reinfectar) com o vírus nas novas ondas também não pode ser ignorado – porque mesmo um caso leve de Covid pode levar a um quadro de Covid longa, lembra Salmo Raskin, de Curitiba.
“Cada vez mais pessoas têm a Covid longa – se você tem uma, duas, três, quatro infecções, a chance de ter Covid longa é maior. Não estamos falando de um aumento exagerado do número de mortes, mas sim da qualidade de vida”, reforça.
Ethel Maciel, da Ufes, concorda. “O Brasil acabou dividindo em recuperados e mortos. Acaba ficando invisibilizado quem ficou com sequela”, lembra.
“A Covid é uma doença nova. A gente acabou criando uma correlação da Covid com a gripe – é uma doença ‘leve’, ‘a ômicron é mais leve’. E não é. É uma nova doença. A gente está vendo agora hepatite [em crianças], que [tem] uma das hipóteses [de causa] o Sars-CoV-2”, completa a pesquisadora.
*Com G1
Foto: Getty Imagens